Nota da Obra Nacional da Pastoral do Turismo (ONPT) para a Época Balnear de 2016

Desenvolvimento turístico e misericórdia é a reflexão que pretendemos propor, neste início de época balnear, de 2016, e no Ano Santo da Misericórdia, que estamos a viver. Partindo da compreensão da misericórdia e da sua conciliação com a atividade turística, deter-nos-emos em três focos fundamentais: misericórdia e pessoa do turista; misericórdia e serviço ao bem comum; misericórdia e sustentabilidade ambiental.

  1. Misericórdia e Turismo

A misericórdia, abundantemente refletida ao longo deste ano, define-se como «comiseração pela desgraça alheia» e «compaixão»[1]. Santo Agostinho, num dos seus Sermões, considera-a mesmo como a capacidade de encher o coração de um pouco da miséria dos outros, recordando que na composição deste conceito se encontram dois termos: «miséria» e «coração»[2]. Mas a misericórdia, que pode aparecer ao mundo hodierno com um pendor negativo, é sumamente a expressão da caridade – do amor de Deus para com os homens e do amor dos homens entre si. Manuel Morujão explicita: «Misericórdia é capacidade de atenção e de ajuda aos outros; é vulnerabilidade, deixando-nos tocar pelas necessidades e sofrimentos alheios; é ir ao encontro do próximo, num amor prático e realista, sabendo intuir o que os outros desejam e precisam»[3]. Daí que conclua que «o centro, o coração do amor é a misericórdia»[4]. Ora, Deus é por excelência misericordioso. Como afirma São Tomás de Aquino: «É próprio de Deus usar de misericórdia e, nisto, se manifesta de modo especial a sua omnipotência»[5]. Sabendo que o rosto visível desta misericórdia divina é o próprio Cristo (MV. 1), pois «o mistério pascal é o ponto culminante da revelação e a atuação da misericórdia» (DM. 7). E o Papa João Paulo II afirma que «a Igreja vive vida autêntica quando professa e proclama a misericórdia, o mais admirável atributo do Criador e do Redentor, e quando aproxima os homens das fontes da misericórdia do Salvador, das quais ela é depositária e dispensadora» (DM. 13).

Se toda a Igreja é chamada a viver este valor essencial – a misericórdia -, também a Pastoral do Turismo o deve tomar como princípio seu, incentivando a que toda a atividade turística o tenha presente na sua realização. Desde logo, no acolhimento sincero de cada pessoa, em autêntico amor fraterno, respondendo às suas necessidades. Depois, na capacidade de viver, em toda a sua extensão, as obras de misericórdia, na relação interpessoal e institucional, em que o turismo se realiza. E, por fim, incentivando a que cada pessoa, em tempo de lazer, com maior disponibilidade de reflexão e meditação, aprofunde este atributo de Deus, dispondo-se a viver a misericórdia à imagem de Deus que é misericordioso (cf. MV. 15).

  1. Desenvolvimento Turístico e Misericórdia

Na consideração da ação turística e misericórdia, deverão assumir especial incidência as Obras de Misericórdia, que o Papa Francisco nos convida a redescobrir ao longo deste ano Jubilar (cf. MV. 16). Não numa consideração restrita do seu conteúdo, mas sim na abertura ao seu significado profundo, enquanto princípios de renovação de todo o serviço ao próximo.

  1. a) Misericórdia para com a pessoa do turista:

Como indicado já noutras ocasiões, a pessoa do turista tem de constituir o centro de toda a atividade do turismo, considerando que este é uma ação de pessoas para pessoas. Na perspetiva cristã, reafirma-se o princípio, enunciado pelo Papa João Paulo II, de que «a pessoa humana é o caminho da Igreja, caminho que está de certo modo na origem de todos os caminhos pelos quais deve caminhar a Igreja, porque a pessoa – toda a pessoa, sem exceção – foi redimida por Cristo» (RH. 14). Assim, considerando que cada pessoa se realiza na satisfação das suas múltiplas necessidades, numa permanente interação com os demais, «através de numerosos laços, contactos, situações e estruturas sociais» (RH. 14), compreendemos quanto o turismo contribui para este desenvolvimento da pessoa, respondendo a algumas dimensões da sua existência – do merecido repouso, à experiência de diálogo com os demais e suas respetivas culturas, à valorização cultural, revitalização espiritual, ou à realização de uma autêntica solidariedade que concretize a «civilização do amor»[6]. Nestas vivências se entrelaçam tanto as obras de misericórdia corporais, como espirituais, que se evidenciam nas atitudes de acolhimento, de partilha fraterna, mas igualmente na correção sincera, quando em causa possam estar valores pessoais, culturais ou patrimoniais. O acolhimento – «núcleo central da pastoral do turismo»[7] – é o primeiro dever de cada comunidade recetora, congregando, na sua realização, boa parte das obras de misericórdia corporais, atendendo particularmente àquela que define a necessidade de acolher o peregrino, pois nela se evidencia a vulnerabilidade de quem se encontra longe da sua pátria, da sua casa, bem como da comunidade humana de pertença, necessitando, portanto, de um especial cuidado de quem o acolhe.

  1. b) Misericórdia e serviço ao bem comum:

Partindo de uma visão igualmente alargada das obras de misericórdia, devemos afirmar convictamente que o turismo deve servir a todos e não apenas a algumas pessoas ou segmentos da sociedade. Desde logo, deverá promover-se um turismo que contemple os direitos e deveres dos trabalhadores do setor. Não raro, os períodos de maior afluência de turistas são marcados por exigências que podem descurar os direitos destes trabalhadores: direito ao justo descanso, à convivência familiar, à celebração da fé, ou mesmo à sua valorização cultural, mediante o acesso a atividades culturais próprias destas épocas. Não descurando, ainda, o sentido de justiça na devida remuneração, seja pela atenção às tabelas salariais, seja pela relação entre tempo de trabalho e sua justa compensação económica.

Por outro lado, o turismo, enquanto atividade económica, viabiliza o desenvolvimento comum, quando as receitas da atividade turística são reinvestidas em proveito do bem de todos. Neste sentido, «dar de comer a quem tem fome», «dar de beber a quem tem sede», ou «vestir os nus», ganham um sentido bem preciso, pois o desenvolvimento económico de um país, também mediante as receitas do turismo, devidamente redistribuídas e reinvestidas, contribuem para o desenvolvimento de todos e de cada um, num compromisso de construir uma sociedade cada vez mais justa e equitativa, onde as necessidades materiais de cada cidadão se satisfazem. Considerando, ainda, que a atividade turística potencia, pela sua própria natureza, uma multiplicidade de atividades, denominadas secundárias, como a agricultura, o artesanato, entre outras, que favorecem o desenvolvimento pessoal e comunitário, respondendo às necessidades materiais de cada pessoa e de cada comunidade.

  1. c) Misericórdia e sustentabilidade ambiental:

O turismo tornou-se hoje um fenómeno de massas. Todos nós sabemos que são cada vez mais as pessoas em mobilidade devido ao turismo, com tendência para aumentar a cada ano que passa. Se o turismo é uma fonte de oportunidades para turistas, empresas, governos e comunidades locais[8], não deixa de ser igualmente fonte de preocupações, particularmente sociais e ambientais. Numa perspetiva de «ecologia integral»[9], a pessoa humana deve ocupar o primeiro lugar nestas preocupações, pois «o bem comum pressupõe o respeito pela pessoa humana enquanto tal, com direitos fundamentais e inalienáveis orientados para o seu desenvolvimento integral» (LS. 157). Infelizmente, o turismo nem sempre serve princípios positivos, pois algumas pessoas que promovem a atividade turística, ou que dela usufruem, «utilizam-na muitas vezes para fins ilícitos, em alguns casos como meio de exploração e, noutros, como uma oportunidade de agressão contras as pessoas, culturas ou a natureza»[10]. Daí que o Papa Francisco nos convide a alargar horizontes, no sentido de considerarmos uma «ecologia integral», que «inclua claramente as dimensões humanas e sociais» (LS. 137).

Do ponto de vista estritamente ambiental, não podemos deixar de atender à poluição produzida pelos resíduos, particularmente pelos não biodegradáveis, bem como ao excessivo consumo de recursos e suas consequências para a alteração das paisagens, para a saúde das pessoas e para a sustentabilidade das comunidades humanas aí organizadas, particularmente quando estes espaços são de densa acumulação em termos de atividade turística. Nestes contextos há que implementar, ainda com maior eficácia, medidas de defesa do ambiente e, consequentemente, de defesa das comunidades e respetivas pessoas. Urge, por isso, implementar «uma mudança de estilos de vida», que sendo pessoais, poderiam «exercer pressão salutar sobre quantos detêm o poder político, económico e social» (LS. 206), como refere o Papa Francisco. Ora, na hora histórica que vivemos, necessitamos de exercer essas obras de misericórdia que nos convocam a «dar bom conselho» e a «corrigir os que erram». A realidade ambiental, no nosso tempo, requer uma nova consciência pessoal e uma autêntica correção fraterna, para atendermos àquele princípio que o Papa Francisco enuncia: «o clima é um bem comum, um bem de todos e para todos» (LS. 23).

Desenvolvimento turístico e misericórdia constitui, pois, um forte desafio a toda a ação pastoral na área do turismo. Não apenas numa dimensão de consciência interna da Igreja, mas num autêntico e empenhado diálogo com o mundo, particularmente através daqueles que desempenham funções diretas na área do turismo[11], de modo a que esta atividade se desenvolva de forma mais justa, solidária, equitativa e ao serviço do autêntico bem comum. Iluminados pelas obras de misericórdia, sentimo-nos animados a viver um turismo mais humano e humanizante, na promoção de todos e na defesa da nossa casa comum.

Lisboa, 07 de Julho de 2016

Pe. Carlos Alberto da Graça Godinho*

[1] Cf. Voc. Misericórdia. In Costa, J. Almeida e Melo, A. Sampaio – Dicionário da Língua Portuguesa. 7ª ed. Porto: Porto Editora, 1994, p. 1211.

[2] Santo Agostinho – Sermão 358 A. In CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO – Os Padres da Igreja e a Misericórdia. Lisboa: Paulus Editora, 2015, p. 57.

[3] MORUJÃO, Manuel – Celebrar e Praticar a Misericórdia. Subsídios para viver o Ano Jubilar da Misericórdia. 2ª Ed. Braga: Secretariado Nacional do Apostolado da Oração, 2015, p. 142.

[4] Ibidem, p. 142.

[5] PAPA FRANCISCO – O Rosto da Misericórdia. Bula de proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia. Prior Velho: Paulinas, 2015, p. 9, nº 6.

[6] PAPA JOÃO PAULO II – Diálogo entre as Culturas para uma Civilização do Amor de Paz. Mensagem para a celebração do XXXIV Dia Mundial da Paz. Vaticano, 8 de Dezembro de 2000, nº 20.

[7] CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A PASTORAL DOS MIGRANTES E ITINERANTES – Orientações para a Pastoral do Turismo. Braga: Edição da Obra Nacional da Pastoral do Turismo, 2015, nº 19, p. 26.

[8] Cf. PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PASTORAL DOS MIGRANTES E ITINERANTES – Mil Milhões de turistas, mil milhões de oportunidades. Mensagem para o Dia Mundial do Turismo 2015. Cidade do Vaticano, 24 de Junho de 2015.

[9] PAPA FRANCISCO – Carta Encíclica Laudato Si. Lisboa: Paulus Editora, 2015, pp. 105 a 121.

[10] CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A PASTORAL DOS MIGRANTES E ITINERANTES – Orientações para a Pastoral do Turismo. op. cit., nº 4, p. 8.

[11] Cf. CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A PASTORAL DOS MIGRANTES E ITINERANTES – Orientações para a Pastoral do Turismo. op. cit., nº 29, p. 39.

* Diretor da Obra Nacional da Pastoral do Turismo (ONPT).

 

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